segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Alfabetização e Educação Infantil:relações delicadas

Pode-se dizer que essa questão é um dos grandes dilemas da Educação Infantil. Entre os que defendem a alfabetização inicial há diferentes posições e entre os que são contra também as opiniões divergem. O professor premido por concepções conflitantes, pela pressão das famílias, pela ação das crianças, sempre que pode quer refletir sobre o assunto. Isso foi o que aconteceu com um grupo de professoras da rede municipal de Caieiras(SP), que tendo participado de um curso ministrado pela formadora do Instituto Avisa Lá Ana Lucia, trouxe a questão da alfabetização na Educação Infantil para o centro do debate. Ela recebeu uma pergunta aparentemente simples: "O que você acha de alfabetizar na Educação Infantil?". Por trás dessa legítima demanda dos professores há uma complexa rede de concepções a serem analisadas, que vão desde o que é ser criança hoje, as funções sociais da Educação Infantil, o ensino e a aprendizagem e evidentemente de que alfabetização falamos. As respostas em geral não dão conta de esgotar todo o assunto. E é sempre importante ampliar o debate.
A criança e a cultura letrada
Para a formadora Ana Lucia, a resposta para essa pergunta está no próprio contexto em que a criança vive: "Em nossa sociedade as crianças estão desde cedo em contato com a língua escrita e logo se interessam por ela, pela sua função social e querem saber sobre o seu funcionamento. Quanto mais contato, maior o interesse e a curiosidade. O longo processo de alfabetização se beneficia muito com a aproximação das crianças ao mundo letrado. O papel da escola é fazer valer o direito que todos têm de fazer parte desse universo, inclusive as crianças pequenas. Principalmente as escolas que atendem crianças de baixa renda, precisam planejar com cuidado um contato prazeroso e eficiente com a escrita”.
Além dessa perspectiva social, Ana Lucia também se apóia nas contribuições trazidas pelo pensamento de Vigotsky: "Concordo com a perspectiva de Vigotsky, quando ele diz que a instrução é válida quando precede ao desenvolvimento, ou seja, não faz sentido a escola esperar o 'momento ideal' para começar a ensinar a ler e escrever. Sabemos que esse é um processo contínuo e que nele podem estar incluídos desafios possíveis e prazerosos para a criança e que por meio da superação desses desafios é que ela se desenvolve e pode avançar ainda mais em seus conhecimentos e competências”.
É justificável que a escrita seja objeto da atenção dos educadores: a concepção de escrita de Vigotsky, associada ao sistema simbólico de representação da realidade, está ligada ao próprio núcleo de sua teoria da linguagem, trazendo questões fundamentais como a da mediação simbólica. Sobre isso, Marta Kohl*, estudiosa do pensamento de Vigotsky, afirma: "Como a escrita é uma função culturalmente mediadora, a criança que se desenvolve numa cultura letrada está exposta aos diversos usos da linguagem escrita e a seu formato, tendo diferentes concepções a respeito desse objeto cultural ao longo de seu desenvolvimento. A principal condição necessária para que uma criança seja capaz de compreender adequadamente o funcionamento da língua escrita é que descubra que a língua escrita é um sistema de signos que não têm significados em si. Os signos representam outra realidade; isto é, o que se escreve tem uma função instrumental funciona como um suporte para a memória e a transmissão de idéias e conceito”.
A criança que vive em uma cultura letrada – pois não estamos tratando aqui das populações indígenas, por exemplo, provenientes de comunidades ágrafas – têm a possibilidade de vivenciar um processo de alfabetização favorecido pelo contato com o meio. E isso não se dá de modo espontâneo e natural, mas incentivado por um informante mais experiente, um adulto ou mesmo outra criança. Para tanto, deverá conhecer e se apropriar desde cedo dos usos da língua escrita presente em seu mundo.
Alfabetizar ou não, uma pergunta mal
Aluna "ensaia" escritaFoto: tifwarmowski
formulada
Emília Ferreiro, embora tenha sido influenciada por Piaget, traz em sua Psicogênese da Língua Escrita idéias que também se justificam segundo o pensamento de Vigotsky e de Luria. Ambos entendem que a escrita é um sistema de representação da realidade e concordam que a alfabetização é resultado de um domínio progressivo desse sistema, que não se resume à conquista de habilidades meramente mecânicas e/ou visuais. Por isso pode se iniciar muito antes do ingresso na escola de Ensino Fundamental**.
As idéias desenvolvidas por Ferreiro também justificam a presença de um ambiente alfabetizador, desde cedo. Para ela a pergunta que envolve "sim" ou "não" está muito mal formulada: "O que digo é que a pergunta está malfeita, porque pressupõe que a resposta NÃO equivale a deixar essa responsabilidade para o Ensino Fundamental, e a resposta SIM pressupõe introduzir na pré-escola as más práticas tradicionais do Ensino Fundamental. O que proponho é substituir a pergunta centrada no ensino por outra centrada na aprendizagem: Deve-se permitir ou não que as crianças aprendam sobre a língua escrita na pré-escola? Nesse caso, a resposta é redondamente afirmativa."
E a justificativa para sua afirmativa, para a defesa da presença da cultura escrita desde cedo, ainda na Educação Infantil, é bastante esclarecedora: "a simples presença do objeto não garante conhecimento, mas a ausência do objeto garante o desconhecimento. Se eu quero que a criança comece a construir conhecimento sobre a língua escrita, esta tem de existir. Se eu a proíbo, garanto que a criança não possa se fazer perguntas sobre esse objeto porque eu o fiz desaparecer dentro da sala de aula.
Se proíbo a língua escrita, crio um ambiente escolar no qual a escrita não tem nenhum lugar, ao passo que no ambiente urbano a escrita tem seu lugar; imponho que as educadoras funcionem com se não fossem pessoas alfabetizadas. Em outras palavras, crio uma situação anômala."
Deve-se, então, permitir que a criança pense sobre a linguagem escrita na escola de Educação Infantil. E para isso ela tem que estar presente. Trata-se, pois, de pensar de que forma é possível apresentá-la respeitando a cultura da infância, propondo situações onde ler e escrever tenha sentido para as crianças e faça parte da vida cotidiana.
Crianças pequenas devem brincar muito
Foto:Michael McCauslin
Brincar ou alfabetizar?
Essa é outra pergunta mal formulada e pressupõe imediatamente uma exclusão desnecessária. As posições antagônicas não ajudam a avançar nem a brincadeira nem o conhecimento da língua escrita. Nas sociedades urbanas as crianças brincam incorporando ações dos adultos, que incluem também eventos onde ler e escrever fazem sentidos. Quando se proíbe que o educador desenvolva atividades de leitura e escrita em uma concepção que respeita o processo de construção de conhecimentos da criança, abre-se caminho para que as práticas equivocadas de alfabetização apareçam, ainda que disfarçadas, quando o controle das equipes dirigentes não é efetivo.
Crianças pequenas devem brincar muito na Educação Infantil, mas também precisam ter contatos sistemáticos com leitura e escrita. A isso chamamos alfabetizar em um contexto amplo, muito diferente de fazer exercícios de coordenação motora, aprender letras isoladas, copiar sílabas ou palavras “fáceis”. Essas práticas nefastas persistem e continuarão presentes na Educação Infantil enquanto a discussão sobre os processos de alfabetização não for levada a efeito com seriedade e concretude.
Alfabetizar para incluir
É curioso notar que a despeito das melhores intenções, muitas vezes a pretexto de proteger a cultura da infância, se nega às crianças o direito de se relacionar na plenitude com a língua materna. Cria-se, na Educação Infantil, um ambiente estéril de onde a língua escrita é quase banida. E são as crianças de baixa renda as maiores prejudicadas por esse afastamento.
Se para a criança dominar a linguagem escrita, tal como se manifesta no mundo – é preciso percorrer um longo processo de reflexão e reformulação de hipóteses próprias para compreender o que é essa escrita, para que serve e como funciona –, o acesso cotidiano é fundamental.
Temos assim não só um problema pedagógico, mas também ético e político. Podemos negar às crianças de baixa renda o acesso? É sobre isso que a escola de Educação Infantil deve pensar.
Telma Weisz***, doutora em Psicologia da Educação, dedicando-se há anos à causa da alfabetização, questiona: "Será que temos, novamente, mais um argumento para provar sua inferioridade (das crianças pobres)?" Vejamos, então, o que se passa.
Para uma criança caminhar em seu processo de alfabetização, ela precisa pensar sobre a escrita. E para isso precisa entrar em contato com esta. Esse contato implica tanto o acesso aos portadores de textos como a atos reais de leitura e de escrita. Uma família de classe média compra livros de história e revistas em quadrinhos para seus filhos ainda não alfabetizados, freqüentemente lê para eles e realiza cotidianamente uma quantidade enorme de atos de leitura e escrita que permitem à criança pensar sobre para que serve a escrita e todas as possibilidades que ela abre. As famílias de classe média ensinam seus filhos pequenos a escrever o próprio nome e o das outras pessoas da casa sem nenhuma preocupação escolar. Apenas porque as crianças se mostram interessadas. E essas se mostram interessadas porque o ato de escrever (ou ler) é visivelmente importante no meio em que elas vivem.
Não é de se estranhar que sejam essas as crianças que têm bom desempenho na escola, elas já entram praticamente alfabetizadas. Não é também de se estranhar que as crianças que vêm de comunidades onde o jornal serve para tudo, menos para ler, onde a leitura e a escrita quase não fazem parte do cotidiano, onde os informantes são raros e inseguros, tenham hipóteses primitivas sobre a escrita. Não é possível pensar sobre um objeto ausente.
Essas considerações, longe de encerrar o debate, abrem caminho para que se compreenda a questão da alfabetização na pré-escola sem preconceitos e com responsabilidade.


*Marta Kohl de Oliveira. Vigotsky – aprendizado e desenvolvimento, um processo sócio-histórico, Pág. 68. Ed. Scipione.** Para saber mais sobre as relações entre Vigotsky, Luria e Ferreiro, leia: Acesso ao mundo da escrita: Os caminhos paralelos de Luria e Ferreiro. Maria Tereza Fraga Rocco. Cadernos de Pesquisa, 75: 25-33. – Fundação Carlos Chagas.*** Revendo a Função Pedagógica da Pré-escola, in Caderno Idéias FDE, no 2, 1988.

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